domingo, 25 de setembro de 2011

[vozes brancas* #51] o meu pai é até ao céu!

Serviço de urgência, sete da tarde de um dia de semana, a hora de ponta de qualquer urgência de pediatria que se preze... Duas médicas e duas crianças com as respectivas mães no mesmo atravancado gabinete de consulta, mais dois ou três doentes e respectivos pais à porta, esperando uma reavaliação. E choros e gritos e tosses e conversas e risos e correrias e nós: "Vá lá buscá-lo que ele fugiu para o corredor!", e eles: "Quero ir para casa!" e "Quero a avó!" e nós: "Pode ir levá-lo à avó, então, que já não precisamos dele aqui. Vá lá enquanto eu passo a receita." e eles: "Não quero xaropes!" e "Quero ficar aqui com a mãe!" e "Tenho sede!" e "Não quero soro, quero água!" e os outros pais: "Veja lá se falta muito para o meu filho ser atendido." e "Já estou aqui há uma hora e houve meninos que chegaram depois e passaram à minha frente, lá porque estavam com falta de ar... o meu também está com febre e ninguém me liga nenhuma!"

E nós a enchermo-nos de paciência porque ninguém tem culpa daquelas condições e ninguém está ali por gosto e ninguém disse que era fácil criar um filho, mas já estamos há dez horas metidas naquele inferno sabendo que ainda faltam mais dez para irmos descansar... E ainda a procissão vai no adro.

Mas mal voltamos costas e já os dois meninos se engalfinharam, numa disputa que não fazemos o menor esforço para compreender: "Não! Não troquem vírus, vamos acabar com isso já!" As mães, claramente cansadas, pegam-lhes ao colo, num último esforço para que não fujam e os possam manter debaixo de olho, enquanto recebem as últimas recomendações. Mas a contenda não ficou resolvida e, do alto do colo das respectivas mães, enquanto se debatem com uma raiva felina para reconquistar o chão e a liberdade de movimentos que lhes pertence, proferem impropérios e ameaças.

- Se eu quiser vou chamar o meu pai para te prender, que ele é polícia!
- E se eu quiser vou chamar o meu para dar uma tareia no teu, que o meu pai é muito mais grande!
- O meu pai é que é maior que o teu!
- Não é nada! O meu pai é até ao céu!
- Mentiroso! Ó mãe, ele é um mentiroso! Não há pessoas até ao céu, pois não?

A mãe, suspirando: "Sim, sim, filho, está bem..." A outra mãe tentando calar o filho, ligeiramente incomodada com aquelas fantasias...

- Toma! Tás a ver? Não há pessoas até ao céu! Toma!
- Ah, mas o meu pai é muito mais grande que o teu!
- E o meu pai é polícia, toma! O que é que o teu pai é?
- É bombista! Toma!
- "Bombista", o que é isso?
- Trabalha nas bombas!

Calámo-nos todos. A mãe a olhar para ele, muito envergonhada com o que o filho acabou de dizer e mal acreditando na nossa reacção. ["Eh lá... Um bombista aqui na urgência?!"]

- Ó filho, a mãe já te explicou que não é bombista que se diz. Ó Doutora, não faça caso, o meu marido trabalha é numa bomba de gasolina...

* Timbre da voz de uma criança antes da puberdade.

3 comentários:

  1. "bombista" :P... apesar da correria, sempre vai havendo uns momentos engraçados!

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  2. Bombista portanto, está dito... Profissão com futuro! ;-b

    Beijos da cidade das acácias,

    Ruiva (a rapariga que confundiu um tubarão baleia com uma lata de cerveja!)

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  3. Que bela história! Só tu para a partilhares com o mundo inteiro... O Vicente tb tinha dessas sínteses: o aparelho elétrico que fazia furos chamava-lhe "furaquim", à trela do cão era a "cordela" (mistura de cordel com trela), o roto de uma peça de roupa era "está rotado" mas a do "bombista" é de ficarmos paralisados!

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