domingo, 27 de novembro de 2011

[e agora, só para compor o ramalhete...] delirium tremens

(...continuando a história que começou aqui...)

Regressei a casa perturbada, mas feliz. Finalmente estava a ver uma luz ao fundo do túnel. Só esperava poder cumprir a minha promessa de que haveria de curar a Inês. Será que encontraria algum medicamento para ela em Nampula? Que raio de doença para se ter no fim do mundo…


Mas o dia ainda não tinha terminado. E a noite era ainda uma criança… Ao portão, o guarda esperava-me com a notícia de que o Sr. Rafael estava doente. Que estava “com espíritos”, mas que as Irmãs não tinham dado autorização para ele ir buscar um curandeiro.

– Com espíritos, Sr. Revenda?
– Sim, Doutora, ele não está a falar certo, fala com os espíritos, treme as mãos e os braços e parece que vê bichos…
Delirium tremens! Valha-me Deus! E já estava a ficar assim ontem de manhã… Vi-o tremer quando lhe fui levar o mata-bicho, mas naquele momento nem sequer associei a nada, achei que seria fraqueza porque não tínhamos jantado… Ele hoje também continuava com as mãos a tremer?
– Não sei, Doutora, de manhã fomos ao Anchilo procurar a minina Inês e durante o resto do dia estive a dormir só...
– Pois... calculo. E eu hoje de manhã nem fui vê-lo, com a preocupação de irmos ao Anchilo. Era só o que nos faltava agora um delirium tremens...
Tremes? O que é isso, Doutora?
– É a doença dos homens que bebem muito. O corpo fica envenenado pelo álcool e já não passa sem ele. Basta ficar um ou dois dias sem beber e começa a tremer, a ver coisas e ouvir coisas…
– Não, Doutora, não é isso. Isto são espíritos maus. Maus mesmo. Quando os espíritos vêm na forma di bichos, as pessoas morrem quase sempre. É preciso chamar curandeiro para tirar os espíritos. As Irmãs não acreditam em mim!
– Sim, Sr. Revenda, tem razão, esta doença provoca alucinações com bichos e pode matar, é mesmo isso! Mas eu também sei tratar esta doença, não são só os curandeiros.

O guarda estava perplexo. Devia achar que eu era completamente tonta. Não compreendia como é que eu podia, na mesma frase, concordar com ele, que era um facto que o Sr. Rafael estava a ver bichos, e depois dizer que conseguia tratá-lo sem a ajuda de um curandeiro.

– Doutora não está a perceber… Isto é uma doença que vem da tradição! Ele vai morrer se não lhe tirarem os espíritos.
– Está bem, Sr. Revenda, mas não se preocupe que ele vai ficar bem…

O guarda olhava-me incrédulo e assustado. Claramente não acreditava em mim e provavelmente estava cheio de medo de morrer também, receoso de que aqueles espíritos violentos e malignos o atacassem por tabela, já que o Sr. Rafael estava em sua casa… Não valia a pena insistir na conversa. Não falávamos de todo a mesma linguagem e eu nesse dia já tinha tido irritação suficiente com a “tradição” para conseguir sentar-me e explicar-lhe com calma que raio era isso de delirium tremens. E no fundo não valia a pena, não ia conseguir. Era uma doença impressionante demais para alguém mudar assim de opinião.

Entrei no quarto. Deitado na cama, o Sr. Rafael tremia por todos os lados com uma expressão de terror, alagado em suor e, fazia movimentos bruscos com as mãos, como se tentasse apanhar insectos ou afastar qualquer coisa que só ele via e que parecia que o ameaçava. Tomei-lhe o pulso, que batia descompassado, ardia em febre e debatia-se sem me reconhecer… Tartamudeava qualquer coisa em macua que não entendia: “Massi, massi.”

– Que diz ele, Sr. Revenda?
– Está a dizer "água".
– Traga-me água, então, numa garrafa para beber e num alguidar também, que temos de o arrefecer. E depois vá buscar o Sr. Cachimbo a Namutequeliwa, é a terceira casa ao lado do portão das Irmãs da Apresentação. Diga-lhe que preciso que me venha fazer um teste de malária, que isto pode ser também malária cerebral…
– Sim, Doutora.

Minutos depois chegavam as Irmãs com a água que eu tinha pedido.

– Não acha que é melhor levá-lo para o hospital? Não sei se nós sozinhas conseguimos tratar dele…

“Bonito!”, ironizei comigo própria. “Está um homem aqui ao pé de ti em perigo de vida e tu nem sequer ponderas levá-lo para o hospital, só te ocorre mandar chamar o homem que te fez bater o coração há dois dias [e reflectir sobre a vida emocional dos pinguins]… Isto está bonito, sim, senhora!”

(continua...)

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