sábado, 21 de abril de 2012

[iapala] e a artemisa


A montanha mágica de Iapala...
(Iapala, Nampula)

(continuando...)

Nessa tarde, uma das irmãs veio chamar-me depois da sobremesa: “Venha tomar café aqui na varanda, que as meninas querem conhecê-la.” Saí para a varanda que dava para o pátio, onde sessenta meninas me esperavam, todas juntas e com um sorriso. Cumprimentei-as, apresentei-me, disse quem era e ao que vinha. Elas continuavam num silêncio envergonhado. Até que lhes perguntei: “E vocês, não se querem apresentar?”
Duas ou três começaram então, casualmente, a entoar uma música simples mas lindíssima, cantada em Macua, que queria dizer apenas: “Bem-vinda, você é linda, queremos conhecê-la.”  E aconteceu então aquele momento mágico que me deixou rendida àquelas meninas e a Iapala...
Recordo que foi nessa tarde que, no meio das meninas, houve uma que de raspão me fez reparar nela porque tinha uma face que me pareceu estranha. Uma face estranha mas ao mesmo tempo estranhamente familiar... [Os cinzentões da Pediatria chamar-lhe-iam facies sindromática, mas eu não costumo ter dessas pretensões, muito menos no meio da savana, e portanto não lhe chamei nada. De qualquer modo naquele momento estava demasiado ocupada a derreter-me com as danças, os cânticos e os batuques de boas-vindas e a deslumbrar-me com a algazarra que sessenta adolescentes conseguiam fazer...] Ficou-me apenas uma estranha sensação nas traseiras da mente.

Fui novamente ao hospital mas, como naquele momento não havia mais nenhuma urgência, voltei para casa para saber se alguém queria ir comigo dar um passeio de reconhecimento nos bairros das redondezas. Precisava de compreender, pelo menos de relance, as condições de vida das pessoas que acorriam ao hospital e os nomes dos bairros mais próximos. Por coincidência, uma das meninas que se ofereceu para me acompanhar era a mesma que me tinha chamado a atenção pouco tempo antes e, à segunda vez que olhei melhor para ela, percebi o que era que ela tinha de especial: um pescoço largo com uma espécie de "asas", um tronco também largo e uma face um pouco grosseira. Olhei para o peito dela e percebi uma total ausência de volume sob a blusa. Tinha Síndrome de Turner, de certeza. [Para quem não está familiarizado com doenças genéticas, posso explicar que ela era menina, mas tinha nascido sem um dos cromossomas X.]

Aproveitei para meter conversa:
– Como te chamas?
– Artemisa, tia P.
– Que nome tão bonito. É o nome de uma planta medicinal, sabias?
– Sabia, sim, as irmãs já me tinham dito.
– E sabes que remédio se pode fazer com ela?
– Remédio para a malária.
– Isso mesmo! E em que classe estás na escola?
– Estou na décima primeira.
– Ah, muito bem. E quantos anos tens?
– Tenho vinte.
– Olha... e diz-me uma coisa, já és menstruada?
– Não, tia P. – o seu olhar, subitamente infeliz, fez-me perceber a minha horrível falta de tacto –, ainda não... 

Calei-me durante um bocado e tentei desviar a conversa, enquanto me sentia culpada por ter recordado assim de chofre àquela menina, ainda para mais em frente da sua amiga, que ela ainda não era mulher. E enquanto prosseguia a conversa sobre o dia a dia na escola, fui fazendo, angustiada, um filme sobre a desgraça que se abateria sobre aquela jovem. 
(continua...)

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