terça-feira, 5 de junho de 2012

[outras palavras] uma coca-cola no deserto, ou a negação da teoria da zona de conforto



Coca-cola algures em Moçambique...


(continuando...)

Certa vez, dei por mim perdido em terra de nenhures. Vinha de viagem, andara uns 300 quilómetros numa carrinha de caixa-aberta, e estava a tentar apanhar um machimbombo que me faria regressar à Beira. A barriga apertava – há 16 horas que não trincava nada – e, na viagem seguinte, talvez houvesse alguém a vender comida, mas talvez não houvesse. O meu dinheiro era de menos, e os olhares sobre minha mochila eram demais. Nunca tinha estado naquela terra, não falava a língua local – e rareava quem falasse português.

Quando encontrei o desejado machimbombo, mesmo à porta dele, vi uma cena de pancadaria. Senti-me frágil, inseguro; estava esfomeado, perdido, e totalmente impotente em relação a qualquer imprevisto que surgisse.

Foi então que decidi beber uma coca-cola. A decisão parecia racional: alimento, hidratação e baixo preço; mas a minha motivação era outra. O seu sabor familiar, o gás previsível, o açúcar conhecido, a garrafa de vidro que a palma da mão advinha, foram, para mim, segurança e santuário! (Na idade média as pessoas podiam entrar em Igrejas, ou Mosteiros e pedir santuário: protecção total de tudo e de todos, mesmo do Rei). Ora, também eu – mesmo que só por segundos – recebi santuário da coca-cola, ou melhor, recebi santuário por fazer algo controlado. Quando parecia que tudo me escapava, um gesto simples, beber uma bebida minha conhecida, foi o suficiente para me recompor. E segui viagem.

Lidar com o desconhecido e o novo traz insegurança e dúvida. Embora seja mais fácil descrever essa fragilidade numa viagem perdida em África, isso também acontece nas relações pessoais.(...) Não sou um receptáculo vazio, tenho uma biografia, uma história, uma família, referenciais próprios. E são os meus referenciais que me permitem (tentar) ser bilingue. Não há intérpretes universais: pessoas que falem todas as línguas, e que percebam todas as racionalidades; mas, percebendo como eu próprio penso, posso tentar enquadrar o raciocínio do outro, posso tentar conhecê-lo.

Parece-me que pôr um pé num sítio firme é condição para poder experimentar a novidade. Beber uma coca-cola dá tranquilidade, escrever uma mensagem a quem pensa como eu ajuda a compreender o que está fora de mim. Estes gestos insignificantes ganham uma carga que os excede porque são tentativas de regressar ao conhecido, de ter os pés seguros, firmes. Paradoxalmente, se não tenho um pé firme, não chego à novidade. Só o saber quem sou e de onde venho, me leva ao outro.

Manuel Cardoso, sj
Perdido, em terra de nenhures
Crónica de Longe, Maio 2012

Sem comentários:

Enviar um comentário